“Na noite de Domingo de Ramos, em 18 de março de 1212, ela começou o mistério de uma divina aventura que não terá mais fim.” (D. Marcelo Gonzalez Martin)
No caminho de consagração de Nossa Mãe Santa Clara, existe um ponto de partida marcado pelo fato que a fará esposa de Jesus Cristo, consagrada a Ele para sempre. Apresenta-se a nós como um verdadeiro exôdo da casa paterna (cf. Gn. 12, 1) rumo à outra terra que o Senhor lhe haveria de mostrar. Com todo o acridoce encanto da fuga do lar – afinal, foi o que Clara teve que fazer – na noite de Domingo de Ramos (18 de março) de 1212, com uma discreta companhia que as fontes não especificam, ela começou o mistério de uma divina aventura que não terá mais fim. A igrejinha da Porciúncula, situada no vale aos pés da cidade de Assis, lugar onde também São Francisco descobrira sua vocação evangélica, será o marco onde Clara desposará Jesus Cristo. O biógrafo anota que este lugar dedicado a Santa Maria dos Anjos será o seio materno que dará à luz as vocações de Clara e Francisco… e suas respectivas Ordens.
“(…) Deixou a casa, a cidade e os familiares e apressou-se a ir para Santa Maria da Porciúncula. Os frades que à volta do altar celebravam as sagradas vigílias, receberam a virgem Clara com tochas acesas (…). Não havia lugar mais adequado para testemunhar o nascimento desta Ordem de florescente virgindade, que esta igrejinha dedicada àquela que é a primeira e mais digna entre todas as mulheres, Mãe e Virgem ao mesmo tempo. Foi neste lugar que, sob a direção de Francisco, teve início a nova família dos pobres. Ficou assim manifesto que ambas as Ordens quiseram começar à sombra da proteção da Mãe de misericórdia. Depois de Clara ter recebido perante o altar de Nossa Senhora as insígnias da santa penitência e de ter desposado Cristo como humilde serva, Francisco levou-a para a Igreja de São Paulo, onde deveria ficar até que o Altíssimo dispusesse doutra maneira.” (LCl 1, 8)
Em Clara se realiza de maneira perfeita a disposição própria dos grandes homens de fé que se deixam fascinar, seduzir e conduzir por Deus. Sabendo perfeitamente o que deixaria para trás, mas desconhecendo, em grande parte, o que estava por vir, confia-se ao Senhor e a seu irmão Francisco e se propõe a percorrer um caminho só conhecido de Deus e que Ele, pouco a pouco, irá revelando.
Com efeito, Clara estava aberta a tudo o que Deus lhe fosse mostrando. Nada estava pré-estabelecido, a não ser buscar e realizar apaixonadamente a vontade divina. E não foi fácil encontrar seu lugar na Igreja primeiro entre as beneditinas de São Paulo das Abadessas, perto de Assis; depois entre as mulieres reclusae de Sant’Angelo de Panzo, na encosta do monte Subásio; e, finalmente, em São Damião, a igreja que Francisco reparou a na qual profetizou sobre as irmãs muito antes que viessem para esta forma de vida, como a própria Mãe Clara recordará em seu Testamento:
“Com efeito, o mesmo santo, quando ainda não tinha irmãos nem companheiros, pouco depois da sua conversão, estando a reconstruir a Igreja de São Damião, onde, plenamente possuído pelas divinas consolações, foi compelido a abandonar radicalmente o mundo, iluminado pelo Espírito Santo, profetizou, com grande alegria, a nosso respeito, tudo o que mais tarde o Senhor veio a confirmar. Numa ocasião, subindo aos muros da mencionada igreja e dirigindo-se a uns pobres da vizinhança, disse-lhes em voz alta e em língua francesa: ‘Vinde e ajudai-me na construção do mosteiro de São Damião, porque um dia hão de morar aqui umas senhoras cuja fama e santa vida glorificará o Pai celeste (cf. Mt 5, 16) em toda a sua santa Igreja’”.
Este texto expressa muito bem todo o processo de sua busca vocacional e da resposta que imediatamente Deus lhe deu: Francisco como porta-voz profético da Palavra de Deus; o mosteiro de São Damião como espaço de um caminho de santidade que se inicia; uma vida religiosa, santa e notória, como dom para quem quiser vir e ouvir seu testemunho; e, finalmente, a glória de Deus em toda a Igreja como objetivo último da santidade de Clara e de suas irmãs.
A Mãe Clara buscará seu lugar nesta única Igreja, aquele que o Espírito lhe havia marcado. Mesmo não coincidindo com nenhum dos caminhos existentes (nem dentro, nem fora do monacato), jamais deixou de buscar sempre a vontade de Deus a seu respeito. E será São Damião o lugar de seu caminho evangélico, que ela não escolherá para se opor a algo ou a alguém, mas que abraçará agradecida, reconhecendo que ali o Senhor cumpria “o que Ele mesmo profetizou através de Francisco”.
Sabemos que Deus nunca repete, e quando chama seus filhos a participar de sua obra criadora, com a vocação lhes entrega também a missão. Nenhum carisma é inútil ou supérfluo, e todos eles, a seu modo, contribuem para o enriquecimento da Igreja, Corpo de Cristo. Nenhum carisma e nenhuma instituição, por melhores que sejam, podem pretender esgotar em si mesmos a riqueza insondável da sabedoria de Deus. Por isso belamente afirma o Concílio Vaticano II que os diferentes carismas da vida religiosa são um traço do Rosto do Senhor, que quando são vividos harmoniosa e complementarmente, apresentam ao mundo a manifestação do único Cristo:
“Procurem os religiosos com empenho que, por seu intermédio, a Igreja revele cada vez mais Cristo aos fiéis e infiéis, Cristo orando sobre o monte, anunciando às multidões o reino de Deus, curando os doentes e feridos, trazendo os pecadores à conversão, abençoando as criancinhas e fazendo bem a todos, obediente em tudo à vontade do Pai que O enviou.” (Lumen Gentium, 46a)
Tão pouco Santa Clara pretendeu assumir em si mesma toda esta manifestação carismática do único Jesus Cristo, que está reservada à Igreja como um todo. Ela, como parte do Povo de Deus, acrescentou sua nota pessoal para que a Igreja mostrasse o Senhor a todos os homens (…).
Concretizamos em três pontos a graça de sua vida evangélica: a vida contemplativa, sua pobreza e minoridade e a vida fraterna.
Evidentemente não estava fundada uma Ordem que reunisse tais características, e não foi simples nem rápido organizar a nova família religiosa, mas Clara se propôs a caminhar na obediência a Deus, à Igreja e à sua própria consciência, fazendo assim, pouco a pouco, emergir o que o Senhor queria dela e de suas irmãs. E isso não só para elas mesmas, mas também para todo o Povo de Deus, para cujo bem reverteria, sem dúvida, o novo carisma fundacional.
8 de dezembro de 1993, Solenidade da Imaculada Conceição da Sta. Virgem Maria
D. Marcelo Gonzalez Martin,
Card. Arceb. de Toledo, Primaz da Espanha.
Traduzido do orginal espanhol por Frei Ary E. Pintarelli, OFM – Roma, 12 de abril de 1994.