“Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração”.
Um dia, no princípio de sua conversão, ele rezava na solidão e, arrebatado por seu fervor, estava totalmente absorto em Deus e lhe apareceu o Cristo Crucificado. Com esta visão, sua alma se comoveu e a lembrança da Paixão de Cristo penetrou nele tão profundamente que, a partir deste momento, era-lhe quase impossível reprimir o pranto e suspiros quando começava a pensar no Crucificado. E rezava:
“Ó Senhor, meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças, antes de eu morrer: a primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão. A segunda, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto for possível, aquele excessivo amor, do qual tu, filho de Deus, estavas inflamado, para voluntariamente suportar uma tal Paixão por nós pecadores”. (1)
Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundância do que nunca a suavidade da contemplação celeste. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado por uma profunda compaixão n’Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte. Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido vôo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevaram-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o vôo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo. Tal aparição deixou Francisco mergulhado num profundo êxtase, enquanto em sua alma se mesclavam a tristeza e a alegria: uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz transpassava sua alma como uma espada de dor e de compaixão. Aquele que assim externamente aparecia o iluminava também internamente. Francisco compreendeu então que os sofrimentos da paixão de modo algum podem atingir um serafim que é um espírito imortal. Mas essa visão lhe fora concedida para lhe ensinar que não era o martírio do corpo, mas o amor a incendiar sua alma que deveria transformá-lo, tornando-o semelhante a Jesus crucificado. Após uma conversação familiar, que nunca foi revelada aos outros, desapareceu aquela visão, deixando-lhe o coração inflamado de um ardor seráfico e imprimindo-lhe na carne a semelhança externa com o Crucificado, como a marca de um sinete deixado na cera que o calor do fogo faz derreter. Logo começaram a aparecer em suas mãos e pés as marcas dos cravos. Via-se a cabeça desses cravos na palma da mão e no dorso dos pés; a ponta saía do outro lado. O lado direito estava marcado com uma chaga vermelha, feita por lança; da ferida corria abundante sangue frequentemente, molhando as roupas internas e a túnica. Fui informado disso por pessoas que viram os estigmas com os próprios olhos. Os irmãos encarregados de lavar suas roupas, constataram com toda segurança que o servo de Deus trazia, em seu lado bem como nas mãos e pés, a marca real de sua semelhança com o Crucificado. (2) Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração. (3)
O fenômeno místico da transverberação (Da obra Chama Viva de Amor, de São João da Cruz)
Volvamos, pois, à obra daquele serafim, a qual verdadeiramente consiste em chagar e ferir interiormente no espírito. Se Deus, por vezes, permite que se produza algum efeito exterior, nos sentidos, semelhante ao que se passou no espírito, aparece a chaga e ferida no corpo. Assim aconteceu quando o serafim feriu a São Francisco: chagando-o de amor na alma com as cinco chagas, também se manifestou o efeito delas no corpo, ficando as chagas impressas na carne, tal como foram feitas na alma ao ser chaga da de amor. Em geral, não costuma Deus conceder alguma merce ao corpo, sem que primeiro e principalmente a conceda no interior, à alma. E então, quanto mais intenso é o deleite, e maior a força do amor que produz a chaga dentro da alma, tanto maior é também o efeito produzido na chaga corporal, e crescendo um, cresce o outro. Sucede deste modo, porque, nestas almas já purificadas e estabelecidas em Deus, aquilo que lhes causa dor e tormento à carne, corruptível, é doce e saboroso para o espírito forte e são. Daí vem o maravilhoso contraste que é sentir crescer a dor no gozo. Tal maravilha foi bem experimentada por Jó em suas chagas quando disse a Deus: ‘Voltando-te para mim, maravilhosamente me atormentas». Na verdade é grande maravilha e digna daquela; abundância de suavidade e doçura que Deus reserva para os que temem (SI 30, 20): fazer com que gozem tanto maior sabor e deleite quanto mais sentem dor e tormento! Quando, porém, a chaga é feita somente na alma, sem comunicar-se ao exterior, pode o deleite chegar a ser ainda mais intenso e mais súbido. Com efeito, como a carne traz sob seu freio o espírito, quando participa dos bens espirituais a ele comunicados, puxa as rédeas para o seu lado, e enfreia a boca desse ligeiro cavalo do espírito, apagando-lhe o brio, pois se ele pudesse livremente usar de sua força, de certo arrebentaria as rédeas. Até que assim venha a acontecer, o corpo mantém sempre o espírito oprimido em sua liberdade, conforme a palavra do Sábio: ‘O corpo que se corrompe torna pesada a alma, e esta morada terrestre abate o espírito que pensa muitas coisas’ (Sab 9, 15).
(Canção II, n. 13)
(1) Dos “Fioretti” – Terceira consideração dos Sacrossantos Estigmas (2) Da Legenda Menor de São Boaventura, Capítulo 6 (3) Tomás de Celano – Vida II, 211