O feliz trânsito de Sta. Clara de Assis

“Bendito este êxodo do vale de misérias, que para ela significou a entrada na vida bem-aventurada. Agora, em troca do austero jejum terreno, partilha da mesa dos manjares celestes. Em troca das vestes terrenas, perecíveis como a cinza, é bem-aventurada no reino celeste e revestida com o manto da eterna glória”.


Da Legenda de S. Clara virgem, escrita pelo Beato Tomás de Celano


Por fim, [Clara] debateu-se com uma agonia que durou vários dias, o que fez aumentar a fé e a devoção do povo. Os Cardeais e os Prelados visitavam-na assiduamente e veneravam-na diariamente como autêntica santa.

O mais assombroso foi que ela durante dezessete dias não pôde tomar qualquer alimento. Mesmo assim era fortalecida pelo Senhor com uma tal energia, que podia encorajar no serviço de Cristo todos quantos a visitavam.

Quando o bondoso Frei Reinaldo a visitou no leito de dor e a quis exortar à paciência, ela respondeu-lhe com toda a franqueza:

“Querido irmão, desde que me foi dado conhecer a graça do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nenhuma pena me foi molesta, nenhuma penitência me pareceu severa, nem nenhuma doença me foi difícil de suportar”.

Já quase no limiar da vida e sentindo muito próximo o Senhor, Clara pediu a presença de sacerdotes e irmãos espirituais para lhe recitarem a santa paixão e sagradas leituras. Consolou-a sobremaneira a presença de Frei Junípero, notável “menestrel” do Senhor que costumava ter acerca de Deus, palavras cheias de fogo. Clara, com grande jovialidade, perguntou-lhe se sabia alguns ditos novos a respeito do Senhor. Começou ele a falar e da sua boca saíam ditos fervorosos, quais chispas flamejantes e a virgem de Deus encheu-se de consolação com as suas palavras.

Finalmente, voltou-se para as irmãs que choravam, exortou-as à pobreza do Senhor e recordou-lhes, com palavras de louvor, todos os benefícios divinos. Depois abençoou os irmãos e as Irmãs e implorou a graça duma bênção especial para todas as atuais e futuras irmãs dos mosteiros das senhoras pobres.

O que depois se seguiu não se pode relatar sem comoção. Estavam presentes dois dos discípulos queridos de São Francisco. Um, o Frei Ângelo, visivelmente triste, mas com forças para consolar os mais tristes; outro, o Frei Leão que beijava o leito da moribunda. Desoladas perante a inevitável separação da mãe, as filhas, banhadas em lágrimas, acompanhavam os últimos momentos daquela que delas se separava. Era com amargura que viam partir com ela toda a sua consolação. Abandonadas neste vale de lágrimas (Sl 83, 7), sentiam que não mais podiam gozar da consolação da mestra. Só o pudor impedia que dilacerassem os corpos. Não podendo manifestar a dor que lhes ia na alma, mais pungente se lhes tornava. A disciplina do mosteiro impunha-lhes silêncio, mas a violência da dor arrancava-lhes gemidos e soluços. Aqueles corações aflitos faziam correr constantes lágrimas nos rostos entumecidos pelo choro.

Voltando-se sobre si mesma, a santa virgem assim falava silenciosamente à sua alma:

“Vai em segurança, que boa escolta levas para a viagem. Vai, dizia ela, porque Aquele que te criou, também te santificou. Ele sempre te protegeu como uma mãe ao seu filho e amou-te com ternura. Bendito sejas, Senhor, porque me criaste”. Quando uma irmã lhe perguntou com quem falava, respondeu: “Falo com a minha bendita alma”. Estava próximo o glorioso guia. Com efeito, voltando-se para uma das irmãs, perguntou-lhe: “Filha, vês o Rei da Glória como eu vejo?”.

A mão do Senhor manifestou-se ainda sobre uma outra irmã (cf. Ez 1, 3), a quem foi dado contemplar com os olhos corporais banhados em lágrimas, uma feliz visão:

Ao dirigir o olhar, traspassado de dor, para a porta da entrada, viu surgir uma multidão de virgens vestidas de branco e coroadas com diademas de ouro. De entre elas uma sobressaía. Era de aspecto deslumbrante e o seu diadema, que terminava em forma de turíbulo com muitos orifícios, irradiava um tal esplendor, que dentro da casa a escuridão da noite se transformou em claro dia. Adiantou-se até ao leito onde jazia a esposa de Cristo, debruçou-se carinhosamente sobre ela e abraçou-a com ternura. As outras virgens aproximaram-se trazendo um manto de esplendorosa beleza e apressaram-se a cobrir com ele o corpo de Clara e a adornar o seu leito.

Esta santa alma expirou, para ser coroada com o prêmio eterno, no dia seguinte à festa de São Lourenço. Liberta do templo carnal voou, feliz, em direção às estrelas.

Bendito este êxodo do vale de misérias, que para ela significou a entrada na vida bem-aventurada. Agora, em troca do austero jejum terreno, partilha da mesa dos manjares celestes. Em troca das vestes terrenas, perecíveis como a cinza, é bem-aventurada no reino celeste e revestida com o manto da eterna glória.


(Legenda de S. Clara virgem , 44ss)

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